Um homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma
tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à
filha, às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história de sua linhagem
desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um
senador da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de
Janeiro atual. A fala desarticulada do ancião cria dúvidas e suspenses
que prendem o leitor. O discurso da personagem parece espontâneo, mas o
escritor domina com mão firme as associações livres, as falsidades e os
não ditos, de modo que o leitor pode ler nas entrelinhas, partilhando a
ironia do autor, verdades que a personagem não consegue enfrentar. Tudo,
neste texto, é conciso e preciso; como num quebra-cabeça bem concebido,
nenhum elemento é supérfluo.
Percorre todo o livro a paixão mal vivida e mal compreendida do narrador por uma
mulher. Os múltiplos traços de Matilde, seu "olhar em pingue-pongue",
suas corridas a cavalo ou na praia, suas danças, seus vestidos
espalhafatosos, ao mesmo tempo que determinam a paixão do marido e
impregnam indelevelmente sua lembrança, ocasionam a infelicidade de
ambos. Embora vista de forma indireta e em breves flashes Matilde se torna, também para o leitor, inesquecível.
Outras figuras, fixadas a partir de mínimos traços, circulam pela
memória do protagonista: o arrogante engenheiro francês Dubosc; a mãe do
narrador, que, de tão reprimida e repressora, "toca" piano sem emitir
nenhum som; a namorada do garotão com seus piercings e gírias. É espantoso como tantas personagens ganham vida neste breve romance. Leite derramado é obra de um escritor em plena posse de seu talento e de sua linguagem.
http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12744
Commenti